Ilhas Dispersas

 

tesouros no Canal de Moçambique

 

Ilhas Dispersas

 

e- fascículo 2

 

A França e o Canal de Moçambique

 

 

josé lopes, dezembro 2014

(1) Éparses ou Eparses?

 

A grafia do nome destas possessões francesas no Canal de Moçambique não tem merecido consenso; as ilhas são indistintamente referidas como Éparses e/ou Eparses em vários documentos oficiais do Senado, do Governo, da Marinha de França, dos serviços meteorológicos de Juan de Nova, e nas próprias solicitações de expansão de plataformas continentais; nas publicações científicas, e nos media francófonos em geral, esta indiferenciação também se regista, à excepção da imprensa malgaxe onde impera a grafia Éparses tal como nos documentos oficiais TAAF e no dicionário Larousse.

 

Esta indiferenciação, mais do que um irritante erro de formação do plural feminino de Épars, sugere um ominoso descuido.

(2) Tradução de Nota de De Gaulle a Jacques Foccart de 3 julho 1961 citada por Pierre Caminade em Comores-Mayotte : une histoire néocoloniale, Marseille, Éditions Agone,‎ 2003 página 26.

(3) Résolution 34/91 de l’Assemblée Générale de l’Organisation des Nations Unies : “Question des îles Glorieuses, Juan de Nova, Europa t Bassas da India”, 99e Séance Plenaire, 12 décembre 1979.

(4) 22 Dezembro 1974

(5) David Mauge - Billets d'Afrique 234 - avril 2014

(6) ZEE ULTRAMARINES: LE MOMENT DE VERITÉ, Rapport  N° 430 SÉNAT, SESSION ORDINAIRE DE 2013-2014, RAPPORT D´INFORMATION, FAIT au nom de la délégation sénatoriale à l’outre-mer sur: Zones économiques exclusives (ZEE) ultramarines : le moment de vérité, Par MM. Jean-Étienne ANTOINETTE, Joël GUERRIAU et Richard TUHEIAVA, Sénateurs.

(7) DE GAULLE OU L'HYPOTHÈQUE FRANÇAISE SUR LE CANADA - EDOUARD BARATON, L'UNIVERSITÉ DU QUÉBEC À CHICOUTIMI, HIVER 2012

A França e o Canal de Moçambique

 

Quando em 1 de Abril de 1960, vésperas da independência de Madagascar, o governo francês decretou que as Îles Éparses 1 passariam a estar sob autoridade directa do ministério ultramarino da França ao invés da nova República malgaxe, abriu-se um dos diferendos mais longos na história do direito marítimo internacional.

 

A posição do governo francês, que hoje se sabe ter resultado de uma intransigência do presidente Charles de Gaulle, foi posteriormente destrinçada numa nota de 3 de Julho de 1961 enviada por de Gaulle a Jacques Foccart, o seu Monsieur Afrique, na qual reafirmava a importância de não se alimentar quaisquer pretensões de soberania de Madagascar sobre tais ilhas; de Gaulle fazia-o nos seguintes termos:

 

“Eu advirto o Quai d’Orsay (ministério dos negócios estrangeiros) quanto a quaisquer influências de Madagascar sobre as ilhas e ilhéus franceses vizinhos. Isso não se justifica de maneira alguma e arrisca-se a conduzir a inconvenientes. Para nós, as ilhas e ilhéus poderão revestir-se de uma importância real, nomeadamente no que concerne às nossas experiências atómicas. Não aprovo portanto que se introduza Madagascar no que quer que seja que se passe nestas ilhas, designadamente no que concerne à meteorologia.” 2

 

Embora tenha acabado por desistir dos ensaios nucleares no Canal de Moçambique quando optou por efectuá-los no deserto do Sahara argelino (Reggane), a França, invocando razões navais de ordem geoestratégica, continuou a insistir num controlo soberano sobre as Ilhas Éparses, mesmo apesar de, em 1973, a questão ter sido submetida às instâncias internacionais pelo presidente malgaxe Didier Ratsiraka.

 

Trata-se de um processo que em 1979 levou a OUA (Organização da Unidade Africana), o grupo dos países não-alinhados, e posteriormente a assembleia-geral da ONU 3, a recomendarem à França a restituição das ilhas Éparses arbitrariamente separadas, ou, no mínimo, a engajar-se em negociações visando a sua reintegração em Madagascar.

 

Um pouco mais a Norte, e num outro contexto de possessões francesas no Afro-Índico, o Canal de Moçambique voltou a ser teatro de atribulações logo após a França e as Comores terem assinado em 15 de Junho de 1973 os acordos conducentes à Independência deste arquipélago; recorde-se que, em 25 de Agosto de 1972, o Comité Especial da Descolonização da ONU havia incluído o arquipélago das Comores na lista de territórios com direitos de acesso à autodeterminação.

 

A França organiza então um referendo nas Comores 4 que, apesar de no conjunto do arquipélago ter registado um apoio pró-independentista maciço (mais de 90%), teve a singularidade de Mayotte se ter pronunciado a favor da manutenção dos vínculos com a França – 65% a favor da manutenção, 35% contra.

 

Pouco tempo depois, no seguimento de recomendações parlamentares de um outro governo francês, passa-se a julgar necessário que os resultados do referendo sejam considerados “ilha por ilha”, e é então que Ahmed Abdallah, presidente do conselho de Governo, declara unilateralmente a independência imediata e total da Comores.

 

Apesar de em várias instâncias internacionais (UA e ONU p.e.) se continuar a considerar que Mayotte faz parte da União das Comores, e que são portanto nulos os referendos parciais que desde então nela têm sido efectuados, o que é facto é que, mercê de vários artifícios jurídico-diplomáticos, incluindo uma velada ameaça de veto no Conselho de Segurança da ONU (6 de Fevereiro de 1976), este território continua a ser administrado pela França enquanto o assunto continua congelado nas Nações Unidas.

 

Curiosamente, no auge do recente conflito Ucrânia-Rússia, a questão Mayotte foi invocada pela diplomacia russa como um dos precedentes jurídico-diplomáticos para a sua anexação da Crimeia.

 

 

Índice

Introdução (e-fascículo # 1 - dez 2014)

A França e o Canal de Moçambique

Anexações Dispersas

Plataformas Continentais

A questão dos Lémures

Bassas da India / Baixos da Judia

Quo Vadis Madagascar

A jogada Unesco

Atum – factos e mitos

Preços e mercados Atum

Atuns e ZEEs

O caso EMATUM

Privatização da Segurança Marítima

Vulnerabilidades Offshore

A protecção das instalações offshore (gás & petróleo)

O que é um Navio?

Economias Exóticas

Mergulho Final

Anexos

Anexo 1 – Projecção naval francesa, Ilhas Éparses, ZEEs e plataformas continentais

Uma opinião australiana sobre a Marinha francesa

Anexo 2 - Acordos de pesca Moçambique-União Europeia

Pesca do Atum

Preços das Espécies-Alvo

Madagascar - Pesca do atum por frotas estrangeiras

Notas sobre técnicas de pesca do Atum

Anexo 3 – sinopse Ilhas Dispersas

De facto, ao justificar um apressado referendo como instrumento para a anexação da Crimeia, o ministro russo dos negócios estrangeiros, Sergueï Lavrov, afirmou numa conferência de imprensa em Londres (14/03/2014) que “este caso não pode ser visto isoladamente, sem que se observem os precedentes históricos … A Crimeia significa incomparavelmente mais para a Rússia do que as Malvinas para o Reino Unido, ou as Comores para a França.”

 

Na ocasião, e ainda sobre o direito à autodeterminação, o ministro Sergueï Lavrov referiu que “nas Comores, no século passado (XX), houve um referendo sobre a independência, e a França insistiu em contar os votos não no conjunto das Comores, mas antes separadamente em cada ilha. Foi assim que Mayotte permaneceu francesa, primeiro como um território colonial (território do ultramar), e depois mais tarde (em 2011) quando ela foi integrada na República francesa como um simples departamento. Se isto foi uma anexação, ou uma autodeterminação, não sei. As Nações Unidas e a União Africana não aceitaram esta decisão francesa, mas a União Europeia continua a viver muito bem com ela! 5

 

Embora seja prudente guardar distâncias face a eventuais oportunismos historicistas, o que é facto é que a maioria dos especialistas que recentemente têm deposto no Senado francês a propósito das Zonas Económicas Exclusivas (ZEEs) e das Plataformas Continentais do ultramar francês reconhece que, hoje em dia, as Ilhas Éparses devem ser consideradas como “zonas contestadas”6 aquando da formulação de futuras políticas marítimas (militares, económicas, científicas, etc.).

 

Dentre os argumentos citados como raiz destes diferendos afro-índicos, Edouard Baraton avança com a hipótese de, relativamente às heranças ultramarinas do Império francês, “De Gaulle, ao longo de toda a sua acção como homem de Estado, ter tido um tropismo diferenciado, segundo as dependências, segundo a história das relações dos ultramares com a França e segundo as naturezas etnoculturais7.

 

Baraton aponta ainda o facto de, “aqui e ali, outros elementos, mais conjunturais, poderem ter influenciado o tropismo diferenciado que o gaullismo e a Va República aplicaram no tratamento da suas heranças ultramarinas… originando dicotomias” que, no caso da descolonização francesa, ainda persistem no caso do Canal de Moçambique (Ilhas Éparses e Mayotte).

 

 

 

josé lopes, dezembro 2014

 

continua no próximo e-fascículo

notas de rodapé: