Johannes Kepler (1571-1630)

 

que era um ardente copernicano, sentiu-se ultrajado pelo prefácio abusivamente inserido no De revolutionibus já que, encapotado em anonimato, o prefácio parecia dar a impressão de poder ter sido escrito pelo próprio Copernicus.

 

Mas quis o destino que Kepler, para além de muita ciência, dispusesse também de coragem para se rebelar contra tiranias intelectuais, incluindo a astronomia geocêntrica de raiz aristotélica.

 

Em 1595, enquanto dava uma aula, Kepler teve a sua primeira visão de uma nova harmonia cósmica. No quadro, desenhava ele um triângulo equilátero com um círculo inscrito no seu interior e um outro circunscrito à sua volta quando, subitamente, Kepler constata que a relação dos raios desses dois círculos era igual à relação entre as órbitas de Saturno e Júpiter, tal como então eram conhecidas.

 

Kepler julga-se perto de uma relação mágica, e imagina então um modelo cósmico construído a partir de sólidos platónicos anichados numa sequência de esferas orbitando em volta do Sol. Contudo, esse era ainda um modelo que, embora revolucionariamente heliocêntrico, continuava a recorrer às tradicionais esferas aristotélicas e a órbitas circulares.

 

O modelo de Kepler não se previa fácil porque, de acordo com a concepção euclidiana da época, só existiam 5 sólidos perfeitos, e o número de planetas então conhecidos já chegava a seis. Mesmo assim, Kepler fica efusivo com a ideia, particularmente porque o modelo lhe parecia permitir casar precisão matemática com harmonia cósmica, e acaba por propor a seguinte ordem sequencial para os sólidos platónicos: octaedro (8 - faces), icosaedro (20), dodecaedro (12), tetraedro (4) e cubo (6).

 

Com apenas 25 anos, Kepler publica então os seus primeiros resultados no Mysterium cosmographicum (1596) dando assim início à mediatização póstuma de Copernicus.

 

Muito embora Kepler houvesse acolhido um eclesiástico conselho no sentido de não dedicar capítulos inteiros à reconciliação do heliocentrismo com as Escrituras, ele resiste à hipocrisia e em Mysterium cosmographicum Kepler afirma, preto no branco, que o universo heliocêntrico é absolutamente e fisicamente verdadeiro.

 

Julga-se mesmo que, de alguma forma, Kepler acreditava na existência dos sólidos platónicos muito embora ele admitisse que a estrutura subjacente ao Universo não poderia ser senão um sinal da obra do Grande Arquitecto, ele próprio.

 

Após algumas outras especulações metafísicas, o Mysterium cosmographicum subitamente muda de tom e começa a explanar-se como uma peça de moderna física. Kepler descreve todos os seus cálculos e raciocínios, e procura uma solução física para os movimentos orbitais.

 

Em definitivo, Kepler não estava disposto a ter que continuar a acreditar em anjos empurrando planetas, e é de facto neste trabalho que, pela primeira vez, se aborda a hipótese de uma força gravitacional que, emanando do Sol, ia perdendo intensidade à medida que cresciam as distâncias planetárias. Para Kepler, a fonte desta força seria Deus, o Grande Arquitecto.

 

Mas cedo se revelaram os problemas de Mysterium cosmographicum, e Kepler tentou adequar o seu modelo, mas sem sucesso – os dados das observações disponíveis não estavam em acordo com o modelo, a teoria dos sólidos anichados mostrava-se incoerente e a sua versão de uma força gravitacional não funcionava. Mesmo assim, Kepler permanecia convencido que andava perto da verdade e resolve então passar à experimentação.

 

Desde logo, o que Kepler necessitava era de boas tabelas de observações astronómicas e havia um astrónomo que as tinha – Tycho Brahe.

 

Kepler envia-lhe o Mysterium cosmographicum e Tycho Brahe detecta que, incongruências à parte, em Kepler habitava uma mente brilhante. Três anos depois, em 1600, Kepler torna-se assistente de Tycho Brahe, em Praga.

 

Mas estes eram dois homens que não podiam ser mais diferentes.

 

Com o seu famoso nariz dourado - uma prótese de ouro, prata e cobre substituía a parte do nariz que ele havia perdido em duelo por assuntos matemáticos – Tycho Brahe, era certamente uma figura esfuziante, mas era sobretudo um cientista apostado em estabelecer um conhecimento rigoroso dos céus e tudo indica que o seu interesse pela astronomia se ficou a dever ao facto de, durante a

juventude (talvez em 1559), ter observado um eclipse do Sol que havia sido previsto por alguns astrónomos.

 

Kepler, por seu lado, era um jovem cientista obcecado com a mística, e conta-se que se mostrava muito pouco tolerante com as bizarrias cortesãs que tanto excitavam Tycho Brahe. Todavia, diferenças à parte, para Kepler era Tycho Brahe quem dispunha não só das melhores tabelas, mas também dos mais modernos e completos observatórios astronómicos da altura – Uraniborg e Stjerneborg na ilha de Hveen, no Báltico.

 

Ocorre que, tal como Kepler, Tycho Brahe também alimentava uma teoria planetária alternativa que já tomava em consideração os notórios erros da visão aristotélica – mas essa era uma teoria que ele se recusava a publicar e, incidentalmente, a teoria era tão egoisticamente sua que os seus colegas e assistentes não conheciam dela a maior parte.

 

Quando Kepler começa a trabalhar como assistente de Tycho Brahe em 1600, o mestre destina-lhe a tarefa de analisar os dados orbitais de Marte – claramente, um dos casos mais difíceis das órbitas planetárias.

 

Contudo, desde cedo que começaram a manifestar-se diferenças, de idade e carácter, e a relação entre eles frequentemenete roçou a tensão. Mas cada um sabia que necessitava do outro e Tycho Brahe, então já com muitos anos de idade, admitiu que, após a sua morte, seria ao jovem Kepler que ele deveria legar o trabalho da sua vida - para que ele pudesse conceber o novo universo.

 

Dezoito meses apenas após o início desta portentosa colaboração o mestre morre e Kepler, após uma disputa com os herdeiros, ganha finalmente o direito de utilização das melhores observações astronómicas da época - a colecção de Tycho Brahe.

 

Mas era notoriamente difícil transformar números em órbitas e, durante anos, Kepler tentou aplicar as observações de Tycho Brahe na formulação de novos modelos heliocêntricos. Note-se que a dificuldade com a órbita de Marte se devia ao facto de ela ser a que mais se desviava da órbita circular. Mas, note-se também que, a resolução desta dificuldade seria a chave para que se entendessem todas as outras órbitas planetárias.

 

Finalmente, em 1609, Kepler publica o seu magnum opusAstronomia nova, onde estabelece com clareza geométrica que a órbita de Marte tinha a forma de uma elipse, e não a de um círculo. Ele estabelece também que o Sol ocuparia um dos dois focos dessa elipse, e esta é a primeira das leis de Kepler.

 

Neste tratado, Kepler define ainda uma segunda lei – cada planeta cobre áreas iguais em tempos iguais.

 

E é igualmente notável que, neste mesmo tratado, Kepler haja correctamente induzido que, na Terra, as marés resultam da força de atracção exercida pela Lua, e que seria essa mesma força que manteria as águas dos oceanos ligadas à Terra.

 

Kepler andava assim dramaticamente próximo de uma teoria da gravitação modelada na atracção magnética mútua. Mas, estranhamente, ele não desenvolve a respectiva lei do inverso do quadrado da distância, mesmo já sabendo que, em Óptica, tal lei já se aplicava à intensidade da luz.

 

No entanto, embora as órbitas dos planetas estivessem agora correctamente descritas, Kepler continuava a sentir-se inseguro quanto à verdadeira natureza das forças que faziam mover planetas e, infelizmente, nunca chegou a descobrir porque razão seriam elípticas tais órbitas. Assim, o conhecimento científico teria que aguardar pelo impacto de uma maçã numa outra mente genial.

 

Porém, tudo somado, com Astronomia nova de Kepler eram finalmente banidos da astronomia os aristotélicos anjos invisíveis empurrando planetas, e o universo astronómico passava agora a ser um mundo de geometria e forças. E, para Kepler, não restavam dúvidas que a coreografia de piruetas da tradicional astronomia geocêntrica podia agora ser substituída por elegantes elipses concebidas segundo um modelo heliocêntrico.

 

No limite, Kepler também demonstrava que a tarefa da ciência não mais seria consagrar o fenómeno, como propunha a ortodoxia aristotélica, mas antes descobrir as leis físicas dos movimentos planetários e expressá-las em linguagem geométrica – explicar o fenómeno, portanto!

 

Em 1618 Kepler retoma o leitmotif da sua vida com a publicação de Harmonice mundi - uma fusão de matemáticas, física e misticismo, onde ele explicita a sua terceira lei dos movimentos planetários: o quadrado do período da revolução de um planeta é proporcional ao cubo da sua distância média ao Sol.

 

A um ritmo infernal, no período 1618-21 Kepler vai publicando o seu Epitome astronomiae Copernicanae, uma completa exposição da astronomia kepleriana, com grande foco nas órbitas de Marte certamente, mas que abrange igualmente os outros planetas conhecidos. Um tratado que viria a tornar-se numa das mais importantes referências astronómicas – um novo Almagest – e que colocava Kepler pelo menos uma geração à frente dos seus colegas astrónomos, inclusive de Galileu.